segunda-feira, 24 de junho de 2024

VELHOS E ENDOSCOPIA

Hoje vi a Live do Carlos Eduardo Valente, que durante muitos anos mantém seu canal de audiobooks os quais vêm sendo preparados com equipamento profissional de ponta, pois ele não é um desses que só pega o celular e faz, ele gosta do acabamento profissional daquilo que domina bem - a dramaturgia, vez que consta em seu histórico profissional o exercício de ator e diretor de teatro e atividades em campanhas publicitárias e comunicação dos tempos em que havia entretenimento via rádio. Sim, o Carlos é um senhor que tem um equipamento profissional de áudio e concentra nos audiobooks o conhecimento que possui.

Um lado mais despojado dele é revelado semanalmente, quando ele faz a Live onde fica mais de duas horas conversando à vontade com quem assiste. Recentemente, ele contou que passou por uma operação delicadíssima no intestino e agora usa a tal da bolsinha a qual espera se despedir em breve, pois parece que não precisará mais dela, mas é necessário internação e cirurgia para tirá-la.

Durante a recuperação da cirurgia no intestino, foi lhe recomendada restrição de algumas coisas, entre elas o refrigerante e o tão popular e estimado cafezinho preto. Eis que ele continua fumando seu tradicional cigarro. Questionei-o a respeito, em particular, e ele falou que o médico não tinha dito nada sobre não fumar. OK, mas precisava dizer? Acho que era meio óbvio, não? Mas não o recriminei. Pelo contrário, eu o incentivei. 

É. Eu percebi um comportamento estranho nele e pensei "deve ter alguma coisa a ver com o cigarro", por isso fui dando corda em particular, até que me meti e soube que ele estava fumando, mas percebi a imensa culpa em falar a respeito. Então não o recriminei. Se ele precisava do cigarro para arribar, então era o cigarro que ele deveria consumir, oras. Depois da nossa conversa, soube por outro amigo que ele ficou bem mais disposto a falar dos projetos e a conversar sobre uma porção de coisas, não era mais o homem confuso e desnorteado que nos assustou. O que não faz a culpa, a mídia manipuladora e a sociedade mercenária e hipócrita na cabeça de uma pessoa de bem, não é mesmo?

Daí você vai me falar que o cigarro é um grande mal porque faz isto e aquilo (coisas que estou de saco caído e velho de tanto saber). Acontece que o cidadão sempre fumou. Desde sua juventude. Seu corpo simplesmente se acostumou com o coquetel diário de química. Você acha mesmo que é super saudável cortar do nada e para sempre toda essa química, assim, drasticamente? Então deixe-me falar uma coisa:

Tive um tio que fez jus àquele filme "Curtindo a vida adoidado", só que infelizmente foi um péssimo exemplo em tudo, principalmente em relação a violência e vícios. O cabra envelheceu e sobrou para minha mãe se prontificar a cuidar dele, já que era seu irmão. Vivia feito um rei, mandava e desmandava nela, fazia a tonta de gato e sapato, até que ela não aguentou mais e resolveu interná-lo em uma dessas casas de repouso que possui enfermeiros e médicos de prontidão para algumas coisas básicas. 

A decisão dela ocorreu após eu ter acompanhado meu tio a um procedimento de endoscopia, pois ele reclamava muito, constante, a todo momento, de dores e uma infinidade de coisas. Mas isso tinha algo a ver com o uso de drogas em um longo período da vida, pois ele tinha os movimentos das pernas atrofiados sendo que não havia nada de físico que explicasse aquele atrofiamento, então um médico uma vez esclareceu que o uso do crack pode ocasionar isso, que é uma lesão cerebral. 

Por ele ter diabetes, algumas coisas eram reais e outras não. A gente nunca sabia. Ultimamente era eu quem ia com ele aos médicos e passava as informações para minha mãe. Mostrava tudo a ela, pareceres, receitas, os diagnósticos impressos, sempre fiz questão de ser transparente porque ele era o bebê dela e "ai de mim" se eu me equivocasse em alguma coisa.

O último exame em que o acompanhei foi para a tal da endoscopia. Deu vontade de chorar. Meu tio estava sem tomar banho, ele comia com as mãos, não usava talher. Estava numa fedentina de urina e sujeira que ninguém conseguia ficar perto. Xinguei minha mãe, que veio com uma história meio sem pé nem cabeça para justificar porque um certo alguém que ela pagava não vinha mais dar banho nele. Ela, sendo irmã e muito idosa, não conseguia nem chegar perto dele porque ele sempre foi muito agressivo a ela, mas isso é uma outra História. Então, a muito custo, um motorista de aplicativo finalmente aceitou levar a gente ao hospital. Eu pagava a mais, só que (eu acho) estava ficando conhecido no app como "aquele que tem o tio porco que não anda e fica gritando", então estava ficando cada vez mais difícil encontrar um motorista que aceitasse a corrida.

No hospital, os demais resolveram ficar distante da gente. Por que será? Como não faço questão de contato com humanos, na verdade, quanto mais distante melhor, comecei a achar ótimo. O cheiro até tinha ficado suportável e comecei a bater um papo com ele numa boa, falando da novela e da política... Eu sempre tinha muita paciência com ele, pois ele nunca tinha me feito nada, apesar de ter destruído a vida de gente ligada a mim. Na verdade, eu sigo aquela filosofia de não fazer ao outro o que não quero que façam a mim. Eu só o tratava como eu gostaria de ser tratado se eu estivesse na situação parecida. Então não era pena, dó, nada disso. Eu sou assim. Mas ainda fiquei com raiva da minha mãe, pelo meu tio estar daquele jeito, por ela estar desperdiçando o dinheiro dela com gente FDP que não fazia era nada do combinado em relação a ele. Estar naquela condição de sujeira era uma grande humilhação. Ninguém merece isso. 

Depois de mais de hora ali (eu nem sentia mais o cheiro dele), fomos à sala da endoscopia. O suposto e jovem médico e uma assistente que parecia a Globeleza fecharam a sala inteira. Eu falei "o senhor quer morrer". Ele não entendeu meu tom, mas logo algo o fez se tocar de que eu estava sendo sarcástico, pois ele e a assistente abriram as janelas e deixaram uma fresta onde era a porta. Ele me perguntou se estava tudo bem, mas no sentindo de: "porra, mano, que isso?! trouxe um cabra da navalha pra cá, meu?", daí viu que fiquei constrangido e começou com o procedimento. Deram uma anestesia que não o deixou desacordado, pois ele estava adorando a auxiliar Globeleza segurando ele e lhe fazendo uns carinhos e falando mansinho no pé do seu ouvido a fim de acalmá-lo e não deixá-lo gritar. Sem-vergonha até nessas horas.

Pela câmera introduzida, fui vendo no telão acima, imagem de cinema, ele todo por dentro. Não havia nada de anormal. Pelo contrário, o médico disse que por dentro ele tinha o organismo de um jovem. Eu falava das queixas dele e aonde eram. Ele passeou com a câmera até os lugares, ia e voltava quantas vezes fosse preciso para me mostrar que não havia nada. E eu realmente via que não tinha nada de errado. Aliás, apesar da imundície por fora, ele estava limpíssimo por dentro. Ele não pegava nem gripe.

Bom, mantive minha mãe informada e devidamente documentada. Ela deve ter colocado em um quadro de devoção o diagnóstico de que ele não tinha nada, mas isso não é da minha conta. 

Resumindo, a endoscopia foi a última vez em que corremos com ele, pois normalmente ele não tinha nada. Um dia ele chegou a pegar uma faca para matá-la, então ela finalmente se tocou que algo estava errado e, apesar de querer mantê-lo no seu colinho, percebeu que o melhor era colocá-lo nessa casa de repouso caríssima. Eu acho que ele merecia a lata do lixo, mas ela quis dar o melhor do melhor pro capetão. Isso apertou a ela, apertou a mim, enfim...

Após um tempo, em uma das visitas que eu fazia para levar algumas coisas que a casa pedia, soube que ele estava sem o cigarros (porque ele nunca largou de fumar). Alguém responsável perguntou se eu não queria fazer a experiência de deixá-lo sem. As pessoas lá podiam fumar, mas como ele gritava demais e falava que estava sempre com alguma enfermidade, ela veio com a conversa de que seria melhor para a saúde dele. Falei com minha mãe, achando que ela iria dar um contra nessa proposta e me mandar de volta lá com os três pacotões de cigarros pro bebê dela, ou ela me caparia. Por incrível que pareça, ela aceitou a ideia. Partiu dela autorizar o teste. 

Milagre. Era ela quem ia até o inferno arrumar estoque de cigarros pra ele.

Um tempo depois, meu tio foi morar com Deus. Dizem que foi descoberto um câncer na garganta. Duvidei, mas fiquei na minha. Se fosse isso, no meu achismo, teria dado algo naquela endoscopia que eu vi com meus próprios olhos. Na verdade, só acreditei mesmo quando o vi no caixão e vi sepultarem e fecharem a sepultura do caixão, pois ele era o tipo que parecia imortal. Quando eu soube, custei a acreditar e não soube nem o que sentir. Achei que me sentiria alegre, mas não. Ficou tudo muito confuso e na verdade fiquei triste, não alegre, e não me permitia ficar triste porque aquela alma não merecia compaixão de ninguém. Então essa é uma questão que até hoje, meses depois, não me permito pensar muito.

Então me lembrei de que tinha ouvido em algum lugar, que o efeito do cigarro, às vezes, era esse: de ocasionar o problema após o organismo nunca mais ingerir aquelas substâncias. Lembro que na época eu tinha achado um absurdo e até falado a mim mesmo (eu falo sozinho, por isso nem eu me aguento e vou encher o saco dos outros na Internet) o quanto a mídia era manipuladora e tal, mas o fato é que essa informação me veio à mente naquela ocasião, feito uma porção de bofetadas na minha cara.

Por isso que não atirei pedras ao Carlos quando ele foi honesto em me dizer que estava fumando. Pois ele só arribou de verdade quando viu que nós (seu público) não o julgamos por isso. 

Eu vejo com a própria vida. Existe o que a medicina fala, mas existe o que a pessoa vive. O diagnóstico do médico não é uma sentença. Não estou aqui dizendo que é para nos tornarmos ignorantes, mas existem certas coisas que a ciência jamais poderá admitir, pois nem sei se ela compreende.

O fato de uma endoscopia não mostrar nada não quer dizer que não haja nada. Talvez não haja, mas talvez possa ser outra coisa que a endoscopia não conseguiu detectar. O fato de um médico lhe dar seis meses de vida não quer dizer que terá esse tempo. Pode ter bem menos ou muito mais. Conheço um homem que foi diagnosticado com seis meses no máximo, só que ele está vivo até hoje, e bem, na medida de suas possibilidades. Apesar de algumas limitações, ele tem autonomia para ir ao mercado, ir tomar um cafezinho aqui e ali, ir à farmácia. O diagnóstico foi em 2006. A doença é super rara, incurável e não tem tratamento. Pois é...

Desejo que o Carlos logo tire sua bolsinha e agradeça a ela por ter cuidado de seu interior.

E meu tio, que ele tenha encontrado os seres para levá-lo à Luz. Muita Luz pra ele.

2 comentários:

  1. Seu texto provocou em mim sentimentos contraditórios, talvez por ser formado por duas partes independentes, mesmo que escritas em um mesmo momento.
    A primeira parte, que fala de seu amigo Carlos, me fez lembrar de três conhecidos tabagistas severos – meu sogro, morto em 1980 aos setenta anos, vítima de um câncer de pulmão que em seis meses o fez passar de homem corpulento, muito forte e saudável a um corpo quase só pele e ossos. Fumou desde os 14 anos, e isso impediu que fosse removido o pulmão doente, pois o remanescente, afetado pelos anos de tabagismo inconsequente, não teria condições de oxigenar adequadamente o corpo.
    O segundo foi meu amigo Pintão, também ele um fumante inveterado, cuja história já foi contada no Blogson Crusoe.
    E o terceiro é meu cunhado, que está há dois meses internado em hospital com enfisema bravíssima (o que me faz pensar que não chegará vivo em 2025). Todos os três têm história de tabagismo pesado e de longa duração. Por isso, creio (e essa crença é só minha) que a interrupção desse vício no final da vida talvez mude realmente um pouco o astral, mas a certeza de que o Alien que está dentro de cada um - que foi por tanto tempo alimentado e gestado - está prestes a se manifestar já é motivo suficiente para que os doentes terminais (eu disse terminais) se agarrem à esperança de cura e nem se preocupem com a ausência do vício querido.
    A segunda parte me provocou horror pela descrição da falta de higiene de seu tio e muita pena por sua mãe ter suportado tanto sofrimento por tanto tempo. Parece ser esse o sentimento principal das mães: proteger os “filhos” e relevar todos os malfeitos de quem protegem e cuidam.
    E uma observação final: fiz o teste e descobri que seu texto ocupa sete páginas em formato A4, fonte Arial 12 (o padrão que eu utilizo em meus textos). Se eu fosse você, o dividiria em dois posts independentes, o que daria mais fluidez na leitura. (Meu comentário também ficou gigantesco).

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    1. Dizem que Chico Anisio tb passou algo assim em relação ao tabagismo. Estamos envelhecendo e uma hora iremos morrer de alguma coisa.
      Sobre minha mãe e meu tio, não gaste vela com defunto ruim. Ela é a versão dele de saia, só que no lugar dos vícios, ela usa a manipulação e o narcisismo. Muita coisa poderia ter sido diferente se ela não priorizasse os marginais. É fácil ela tirar de quem a ama e batalha para dar uma vida digna a ela, pra fazer graça ao "alimentar" demônios. Hoje ela ainda continua sendo trouxa de parasitas. Quando tento impedir, ela briga, me xinga, me amaldiçoa. Ela pede que todo mundo faça essa ela de trouxa. Chega a ir na casa das pessoas "oi, fulano, você sumiu, não liga pro meu filho não, ele é louco".
      Sobre a postagem, alguém sempre lê.
      Obrigado, Jotabê

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