domingo, 4 de agosto de 2024

Bar do Sô Gusto

Vi no blog do Eduardo o relato de uma traquinagem que ele fez na infância. Ao citar o envolvimento de uma vendinha (daquelas que tinham de tudo um pouco, verdadeiras mercearias), fui tomado pela gostosa nostalgia da minha época de infància, da vendinha que existia nela e de uma coisa parecida que fiz. Eh, Eh!

Eu tinha entre cinco e seis anos, eu acho (mais certo que seis), e a vendinha mais próxima era a do Sô Gusto (Seu Augusto, mas a pronúncia era essa).

Nada mais era do que um bar grande e tão abarrotado de variados itens, que mal conseguíamos transitar. Meu pai sempre comprava coisas lá. Por ele sempre ter sido o tal homem de família trabalhador, comprava pela caderneta. Eh, Eh!

Era comum ele ir comigo e minha irmã e acabar comprando alguns mimos pra gente (paçoquinhas, balas, suspiros, teta de nega, queijadinha...). Claro que não comprava tudo isso. Era uma coisa ou outra. Com o passar do tempo, eu e irmã íamos sem precisar dele e comprávamos nossas guloseimas. Já estava tudo acertado entre meu pai e o Sô Gusto. Ele anotava e depois meu pai passava lá, pra saber melhor (e acabava comprando algo mais). A gente se perdia entre os Mini-Chicletes coloridos, dipiliques, chicletes Pingue-Pong, Ploc com figurinhas do Tom & Jerry, Ploc Monster, chocolates do Fofão (puro hidrogenado da Dizzioli), guarda-chuvinhas, etc, etc e etc. rsrs...

Naquela época, eu já gostava de papel e caneta, de rabiscar, desenhar... Então, vez ou outra, me tapeando bastante, meu pai "tirava" um caderno no bar do Sô Gusto. Eu sempre ia junto, sempre insistindo, querendo, olhando grande para a área dos cadernos, como se eles fossem barras de ouro - e eu, um dos bandidos de La Casa de Papel. Eh, Eh!

Mas o meu pai, tadinho, ele "tirava" sempre os caderninhos mais fininhos, mais basiquinhos, com aquela capinha mole, xoxa e nada atrativa. Acho que mal passavam das quarenta páginas. Eh, Eh!

Percebendo que eu e minha irmã tínhamos ganhado a confiança do homem, um belo dia eu fui lá sozinho, super tranquilo, maior psicopata mirim (zoeira) e falei pro Sô Gusto, que meu pai tinha deixado eu pegar um caderno. Ele até já sabia que caderno que era, então foi direto nos mirradinhos. Eu falei que não era aquele, que ele tinha deixado eu pegar outro. 

- Esse aqui? - ele mostrou um outro, até melhorzinho, mas eu balançava a cabeça: "hã-hã".

- Esse?

- Hã-hã.

- Então, qual que é?

Eu apontei o dedo. Ele apanhou o caderno, me deu uma olhada bem diferente, tipo: "Ah, seu malandrinho..." e abriu um sorrisão de um segundo. Só hoje eu dimensiono que o sorriso era porque o caderno custava bem mais, pois era do mesmo tamanho que os outros, só que bem grosso e tinha uma capa mais resistente de papel-cartão com estampa abstrata em preto de laranja, lombada em espiral.

Fiquei feliz da vida com o caderno em casa. Quando meu pai chegou do trampo e se sitou... 

G-ZUIS!

Eram anos oitenta - um padrão de rotina e de criação muito diferente em relação aos dias atuais. Hoje em dia, as crianças são verdadeiros reizinhos, comparando com aquela época onde muita coisa era tida como normal. Bater era visto como educar, então era a coisa mais normal do mundo levar un safanões, apanhar em sílabas, de havaianas, de cinto. Bastava um simples olhar pra gelar a nossa alma. Ah, Ah! 

Eu não apanhei nesse dia. Em compensação, o que eu ouvi me doeu tanto quanto. Minha mãe já vinha me botando pânico antes: "cê vai ver quando seu pai chegar, cê vai ver só...", e daí foi um escândalo tremendo, sermões que hoje nem me lembro mais, só lembro da sensação de dor, desânimo, uma vontade imensa de jogar aquele caderno fora e só ir deitar.

Nunca mais passei nem perto do bar do Sô Gusto sem estar com alguém, pois meu pai me avisou (depois) que já tinha alertado ele pra não me vender nada, nem uma balinha Ice-Kiss - na época, ela nem existia mesmo, mas já tinha a Chita.

Pra terminar, só alguns anos atrás foi que fiquei sabendo que o tal do Sô Gusto dava uns pegas na minha tia que morava ainda mais perto dele (era só dobrar a esquina). Desses pegas, veio um filho que também nunca soube que ele tinha sido seu verdadeiro pai. Suponho que veio a saber anos atrás (já com quarenta anos) por causa da herança milionária (segundo boatos) a qual teve direito. Deve ser verdade, pois o padrão de vida mudou completamente. A parentada repleta de tios e primos nunca lhe perguntou nada e o banco já me avisou que também não é da minha conta. Eh, Eh!

14 comentários:

  1. Já pensou se os dramas familiares de hj fossem por um mini chicletes pego a mais na vendinha ou por um caderno melhorzinho?
    Lembro bem de todas as vendinhas dos bairros que fizeram parte de minha infância.
    Abç

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    1. Tem coisas que é melhor nem pensar tanto, senão eu fico paranoico. Cada época tem suas especificidades. Só sei que a criançada hoje tem tudo, inclusive um poder que nunca tiveram.
      Um abraço ❤️

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  2. Eu nunca apanhei de meus pais, nunca mesmo. O máximo de que me lembro foram alguns beliscões dados por minha mãe. Mas meu pai, se nunca levantou a mão para me bater, usava palavras cortantes que doíam mais que palmada. Quando queria, falava, falava, falava, sempre em voz baixa, mas a sensação que eu tinha era a de um furacão que se aproximava. Justamente por nunca ter apanhado de meus pais, espanquei meus filhos (ferida que continua aberta em meu peito e que sei que nunca fechará).

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    1. Eu nem sei o que dizer. Como falei na postagem, era considerado normal na época. Claro: não o espancamento exagerado, mas havia sim punição com cintadas e chineladas e palmadas. Servia para sabermos os nossos limites e reconhecer a autoridade em casa. Hoje são outros tempos. Parece até outro planeta.
      Eu acho bom que você tenha essa consciência. Sinal que hoje você pode estar melhor que antes. Isso é bom, desde que na prática também seja assim.
      Eu não sei como você foi no passado. Sei como você é hoje. Acho que eu gostaria de ter sido seu filho. Gostaria mesmo.

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  3. Talvez você esteja equivocado como a senhora que ficava no caixa da padaria onde fazia compras, que me disse um dia: “Deve ser muito bom ser sua mãe”. Fui realmente um bom filho? Serei realmente um bom pai? Acho que sou como aqueles manequins de vitrine – estão bem vestidos, mas você sabe que não são de verdade. Mesmo assim, fiquei comovido com o que você disse no final. Obrigado mesmo!

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    1. Você era muito enérgico? Usava bem dessa forma de criação (chineladas, cintadas, palmadas) que era normal antigamente?

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    2. Eu sempre fui de racionalizar. Pensei em três filhos por ter lido que pai e mãe mais três filhos era o núcleo ideal de uma família. Tivemos quatro filhos. Fiquei tão incomodado com as palavras cortantes de meu pai que resolvi bater em meus filhos por acreditar que seria menos traumático para eles. O problema é que eu era impulsivo e dava palmadas por qualquer motivo (às vezes até sem motivo real). A quantidade de pancadas decresceu do mais velho para o mais novo. Infelizmente, um dia espanquei meu filho mais velho com uma correia. Ele estava sentado e eu em pé à sua frente. A correia bateu nos braços, ombros e sei lá mais onde. Ele era uma criança indefesa tentando se defender de um monstro. E o motivo foi se recusar a fazer o dever de casa ou outra banalidade assim. Terminamos os dois chorando, eu abraçado a ele. Ele diz que não se lembra disso (duvido), mas a ferida que isso causou em mim nunca fechará. Eu me sinto terrivelmente mal quando me lembro de um adulto dando palmadas sadicamente em quatro crianças adoráveis e indefesas.

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    3. Que bom que chegou a conversar com ele sobre isso. Pelo menos ele sabe que você hoje se arrependeu. Você não sofreu isso pelo seu pai, mas vivia em toda uma dociedsde que normaliza esse tipo de coisa, então, mesmo não acontecendo com você, o seu eu pegou essa coisa toda porque era o tal fo normal, daí você usou em seus filhos.
      Esse era um grande problema: achar que era mais fácil e prático partir logo para o autoritarismo da agressão física.

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  4. Legal fabiano que eu te fiz rememorar essa tua traquinagem. Eu até acho que foi uma traquinagem legal, pô! Não merecia ser castigado. Duas coisas memoráveis: a tal de caderneta onde se anota as compras fiadas (coisa que já existe há séculos) e a frase fatídica "Quando seu pai chegar..."
    ah, bons tempos onde levávamos chineladas nas coxas e não precisávamos de terapia depois.
    Gosto de ler sobre acontecimentos pessoais e também de escrevê-los.
    abraços e boa semana.

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    1. Nessa ocasião, foi só o castigo de ter que ouvir um monte de merda. Eu não gostava de apanhar. Evidente. Quando vejo as crianças de hoje, percebo que algumas realmente precisam de uma interferência enérgica para o próprio bem delas, pois são verdaeiros capetas. Eu me estresso com a criação permissiva de hoje, pois a criança vai crescendo sem limites e sem pensar no outro. E antes que alguém venha com discurso de liberdade, vou logo dizendo que às vezes conheço a questionar se esse excesso de liberdade desde cedo vem sendo tão bom assim ao país. Crianças precisam ter pais ou responsáveis que lhe proporcionem segurança na vida e meios de estudar, de se tornar alguém. Essa é a forna de amor mais real e construtiva que um flho pode levar para a vida inteira. O problema dessa cultura de bater para educar é que os pais não sabem quando parar. As vezes o filho já tem 12 anos e o pai acha que ainda pode ficar dando chineladas como se tivesse 7.
      Melhor seria não precisar usar esse recurso nunca, mas às vezes parece que resolve. Bom, não tenho filhos, então acho que tudo que falei não serve de nada. Como diz hoje rm dia? Não tenho lugar de fala. Reconheço. Mas é o pensamento. E naquela época era o padrão . Não se muda o passado.

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  5. Rapaz, que lembrança mais inusitada, o teta de nega. Uma delícia. Já pensou se um doce é vendido com um nome desse hoje em dia?

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    1. Era uma delicia mesmo. Ainda existe, mas deve estar com outro nome. Como podem ter mudado o nome de uma coisa tão gostosa?

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  6. Oh que excelente memória! Também adorava (alias ainda adoro) um caderno bonito e não dispenso escrever à mão sempre que possivel!

    Beijos e Abraços,

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    1. Embora minha letra não seja das piores, não gosto mais de escrever à mão, mas os cadernos têm o seu charme. Para mim, virou algo nostálgico.

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